sexta-feira, 15 de abril de 2011
terça-feira, 5 de abril de 2011
Estamira
Por Luiz Guilherme
Um dia desses estava lendo a ficha técnica do filme “O Lixo Extraordinário”, documentário que concorreu ao Oscar e que retrata o trabalho do artista plástico Vik Muniz em um dos maiores aterros sanitários do mundo, o Jardim Gramacho, na periferia do Rio de Janeiro. Pois bem, o fato é que o nome Jardim Gramacho me chamou a atenção; tinha certeza que já havia ouvido esse nome em algum lugar, e não foi preciso muito tempo para me lembrar aonde. Em poucos segundos a imagem daquela senhora de 63 anos se formou em minha mente: Estamira era o nome dela.
Existem filmes que te fazem questionar os padrões de consciência e as singularidades de cada ser humano, que sempre e sempre nos surpreendem, e, muitas vezes, somos levados a pensar que o interessante, que o sábio, só é possível em meio ao belo, ao exótico, quando muitas vezes é em meio ao caos, ao repudiável e chocante aos olhos da sociedade que se encontram as mais engrandecedoras e impressionantes histórias. É assim com o documentário “Estamira”, do diretor Marcos Prado, que mostra os delírios e a sabedoria de uma senhora de 63 anos que tira o seu sustento do aterro sanitário do Jardim Gramacho – o mesmo retratado no também documentário “O Lixo Extraordinário” – um lugar que recebe mais de 8 mil toneladas de lixo produzidos no Rio de Janeiro.
Uma paisagem desoladora – que mais parece saída de um filme de ficção, daqueles que mostram um mundo futurista destruído por um evento nuclear, com pessoas afetadas pela radiação vivendo apenas pelo instinto de sobrevivência – com poços de gás tóxico que borbulham do chão, corpos de pessoas assassinadas e ali desovados, a montanha de lixo varrida pelo vento em meio à tempestade e, ao fundo, de forma tímida, contrastando com tudo isso, a bela paisagem natural do Rio de Janeiro, ambas colocadas em um mesmo plano (uma sutil ironia, quase como se pudéssemos ver uma fina linha dividindo esses dois mundos tão próximos). Em meio a tudo isso encontra-se Estamira, com sua loucura, sua intensidade, sua sabedoria insana e gutural; Estamira é uma mistura de tudo e de todos, uma enorme miscelânea que vai do médico ao louco, do pastor ao filósofo, da mãe à filha, de deus ao demônio.
O diretor Marcos prado acompanhou o dia a dia de Estamira por mais de 3 anos, presenciando não só o seu trabalho no lixão como também a sua conturbada relação com os filhos e netos, que varia de momentos afetivos à explosões de uma fúria avassaladora.O ponto onde Estamira se mostra mais lúcida é em seu discurso contra o descaso do sistema de saúde pública no tratamento do “quadro de psicose” diagnosticado pelos médicos. “Eles estão dopando quem quer que seja com um só remédio”, “esses remédios são dopantes para cegar os homens”. É com frases como essas que ela se refere às atitudes dos médicos e aos medicamentos receitados sem uma mínima avaliação do paciente, com a intenção apenas de anestesiar os sentidos e não de tratar a causa da doença. “Eles são copiadores... eles só copiam”.
Ao longo do filme a história de Estamira vai revelando os traumas de infância, os conflitos familiares e os muitos motivos para a sua ira e a sua fuga psicótica. Apesar de seu claro distúrbio mental, há em Estamira algo de lucidez, mais que lucidez, algo de sábio. Muitas de suas palavras são dignas de reflexão. Ao falar do lixão, ela mostra uma clareza que muitos não possuem: “Isso aqui é o depósito dos restos. Às vezes vem também descuido (...) conservar as coisas é maravilhoso; lavar, limpar e usar mais. O quanto pode. As pessoas têm que prestar atenção no que elas usam e no que elas têm, porque ficar sem é muito ruim”. Não há como negar a sabedoria de tais palavras.
Estamira é um documentário lírico e intenso, com a crueza de uma loucura repleta de razões.
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