sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Adeus, Eulálio!

Por Carlos Assis

Assim que li o texto Minha Geração, postado pelo Ernesto, lembrei-me do livro Leite Derramado, do Chico Buarque. Mesmo com todos os prêmios, o apelo dos jornais e dos amigos que não arriscaram criticar o lançamento do inviolável da MPB, não havia lido o livro. Mesmo assim, o muito que ouvi falar dele foi suficiente para fazer com que a identificação com o post do meu amigo colunista fosse imediata. Consegui o livro e comecei a lê-lo.

O velho Eulálio, protagonista do livro, é um moribundo centenário preso a um leito de hospital, que entrelaça com esforço os fiapos de memória aos acontecimentos do presente, reconstruindo através de diálogos, solilóquios e devaneios o homem que foi um dia – membro de uma família tradicional, descendente de portugueses, de um barão do Império, de um senador da Primeira República e herdeiro de toda a decadência produzida por essa aristocracia sem virtude que manteve durante séculos seus sobrenomes firmados em alicerces movediços e fragilizados pelo tempo (o tempo, Ernesto, só ele!).

Eulálio inicia sua narrativa delirante dirigindo-se a uma enfermeira(?):

“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família.”

O saudosismo que alimenta o histórico dessas abastadas famílias cria em torno delas uma aura de heroísmo quase mítico, dando a entender que ingressar nesse universo privado e acessar suas riquezas materiais e imateriais (como o peso do sobrenome) é mais valioso que qualquer coisa; portanto, retribuir tais honrarias como quem contrai uma dívida que não existe, é o mais certo do ponto de vista do patriarcado.

E Eulálio continua: “Minha mulher (...) já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe.” A mulher nunca será como a mãe porque é um membro agregado à família, e está sobre o crivo da mesma constantemente. Ele demonstra o mesmo ao falar do genro: “Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro.” O culpado pelo fracasso financeiro da família é também um agregado, o genro. Mas, por outro lado, orgulha-se do ancestral figurão do império, um abolicionista, porque queria mandar todos os “pretos brasileiros” de volta para a África.

Assim, cavando a memória, ele se lembra daqueles que o serviram: “(...) volta e meia lhe pedia um favor à-toa, mais para agradar a ele mesmo, que era de índole prestativa.” A lógica arcaica do bom escravo, hoje usada para definir o bom empregado, que serve porque gosta, não porque é mandado ou por questão profissional de interesse mútuo (prestação de serviço em troca de um salário). O curioso é o protagonista confessar que, na solidão, recorre à companhia do servo. Falta-lhe a amizade verdadeira, aquela que só germina onde não há relação de poder. É a solidão que prevalece quando todos os relacionamentos estão fadados aos seus caprichos, mandos e desmandos.

E nesse tom carregado de soberba e arrogância continua o velho Eulálio, fazendo planos para um futuro que não pertence a ele – ele está morrendo –, e, nesse futuro imaginário, ele pensa apenas em reavivar o nome de uma família que já está esfacelada. Lembra-se das propriedades da família que hoje estão soterradas pelos prédios da cidade que, na velocidade que lhe é característica, arrasou todo o cenário onde essa personagem foi rei um dia – por isso ele odeia o novo, a mobilidade, o dinamismo (a cidade cria o anonimato; ninguém conhece Eulálio d’Assumpção).

Eulálio é o Brasil arcaico, aristocrático e coronelista que o tempo, “com sua calma avassaladora”, varre do presente. Ele é o “tudo” e o “todos (...) de que o mundo está farto”.

Adeus, Eulálio!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Pior do que está fica sim!

Por Silvio de Assis

Em 14 de setembro de 2010, foi publicada (em poucos veículos de comunicação) a informação de que o juiz da 1ª Vara da Família do Tatuapé, Alberto Amorim Micheli, tinha sido afastado do cargo pelo Tribunal de Justiça de São Paulo devido a possíveis ligações com o crime organizado. Em uma quebra de sigilo bancário, foi identificada a quantia de R$ 2,7 milhões em sua conta pessoal.

Além disso, Suzana Miller Volpini, a esposa do juiz, também foi investigada e foi identificada a ligação dela com os possíveis líderes da maior facção criminosa do estado de São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC). No texto da denúncia, o procurador afirma que Suzana cobrava para atender a pedidos de detentos. “A paciente, segundo a peça acusatória, teria sido cooptada pelo bando, de cujos interessados, individualmente, ou da própria organização criminosa, receberia honorários”. Durante a investigação, também foram descobertas possíveis ligações “extraprofissionais” entre a advogada e a facção, pois ela também fazia visitas íntimas, nos finais de semana, a um dos principais líderes do bando antes de se casar com Micheli. O Ministério Público afastou Amorim e denunciou Suzana por formação de quadrilha e falsidade ideológica.

Uma pessoa que decide histórias como, por exemplo, para quem conceder a guarda de uma criança, não pode continuar exercendo seu cargo estando possivelmente envolvida com tanta sujeira. Por isso, lendo a notícia, num primeiro momento, quando recebemos esse tipo de informação, ficamos um pouco mais tranquilos, pois é um indício de que a justiça conseguiu fazer o seu papel, principalmente quando é um representante da sociedade que está envolvido com o crime organizado.

Após uma conversa, em sala de aula, com minha professora de legislação, decidi escrever sobre esse caso, pois ela propôs uma discussão observando além do que vimos acima.

Alberto Amorim Micheli foi afastado do cargo e corre o risco de ser condenado à prisão. Porém, por ser um juiz de direito da vara da família, é protegido pela Lei de Magistratura. Essa lei garante que mesmo afastado, ou preso, receberá seu salário até seu último dia de vida. Então, mesmo atrás das grades, sua conta continuará “gordinha”. Essa mesma lei garante também que, caso tenha problemas de saúde, cumpra a pena em regime semiaberto, pois não temos no Brasil prisões estruturadas com clínicas médicas. E, na maioria dos casos, quando esse tipo de pessoa é presa, fica rapidamente doente, o que a impossibilita de continuar na cadeia. Dessa forma, concluímos que ele foi afastado e, se condenado, ficará em casa recebendo um “salariozinho” mais ou menos. Coitado.

Nossa, mas isso é um absurdo e não é justo! Porque um criminoso investigado por formação de quadrilha, que pratica seus crimes com a própria esposa, ainda continuará recebendo seu salário (que é pago pela sociedade)?

Não... não é um absurdo.

Sabe por quê?

Pensemos juntos...

Como é possível mudar essa regalia de um juiz que não tem medo da justiça do nosso país porque sabe que o pior que lhe pode acontecer é ser afastado do trabalho e continuar recebendo seu salário até morrer?

Fácil. Com projetos de leis que mudem a lei da magistratura.

Quem é que pode fazer isso?

Um deputado federal.

Ah, sim! Então em breve isso vai mudar, correto?

Utopicamente, podemos dizer que sim. Mas quem foi mesmo o deputado federal mais votado do país?

Sim... ele que está nesse momento (segunda-feira, 07/02/2011) exercendo sua verdadeira profissão com maestria na televisão, o “abestado” Tiririca.

“Abestado”? Não. “Abestado” é outra pessoa.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Minha geração

Por Ernesto de Castro

Minha geração, entregue à inércia do seu tempo, espera, com a paciência que lhe é característica – um misto de inquietação e rebeldia, fruto de caprichos e mimos –, a passagem do tempo; deposita no ato diário de virar as folhas dos calendários a justiça que aprendeu a não fazer questão, não reivindicar, não trazer ao mundo. É o tempo – só ele – que pode, com a sua calma avassaladora, varrer do presente tudo o que virou passado, mas que insiste em reivindicar espaço no agora – e que o tudo, vá acompanhado do todos que compartilha o ranço das ideias de que o mundo está farto.

Pobre cavaleiro errante, esse tal tempo. Vaga por essa época com a tarefa que não lhe cabe, enquanto nós depositamos nele nossas esperanças, porque a única certeza que temos é a de que não vamos fazer nada.

...

Que eu esteja errado.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Autorretrato

Por Helô Beraldo

Trabalhando em um catálogo de literatura infantojuvenil, me deparei com um livro com que gostei muito de trabalhar. Na capa, ele tem um hot stamping que simula um espelho, o que foi a madeleine do meu dia.

Certa manhã, um original caiu em minhas mãos. Primeira versão de um livro que retratava apenas o pessimismo de uma pessoa que deveria ter sofrido algum trauma e o vomitado em palavras. Precisava dar minha opinião, mas resolvi ficar quieta para não fazer a cova de Schopenhauer tremer sob meus pés. Passados alguns meses, o editor resolveu perguntar o que eu tinha achado do livro: suei frio, falei e ouvi seu eco – o livro não tinha mesmo agradado. Foi pedida uma nova versão para a autora, com todo o cuidado e respeito que se deve ter em uma situação como essa [as ilustrações não tiveram uma segunda versão, pois eram ótimas].

Passadas algumas semanas, a nova versão já estava em minhas mãos. Fui surpreendida, pois a autora havia escrito outro livro, com toda a humildade de quem consegue ouvir a crítica sem se abalar. Gostei tanto desse livro, que minha empolgação acabou em um pedido do editor: “Helô, quero que você escreva uma introdução, tá?”.

***

“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta

[…]

Mas um dia afinal eu toparei comigo...”

Mário de Andrade, “Eu sou trezentos”, em Poesias completas.


A poesia trabalha palavras e formas. A prosa nos conta, com palavras e de forma livre, algum fato. A prosa poética põe lirismo nas palavras de quem descreve o cotidiano. As artes plásticas, ligadas às palavras, dão forma ao que sentimos.

As imagens, as cores e as palavras mostram os espelhos em que nos refletimos diariamente: o olhar-se na família, na casa, na cidade, no mundo; as escolhas e as respostas que definirão o que ser ou não ser; percepções de gostos, desgostos, do tempo passando; a descoberta dos segredos, do sentir amor, da identificação com o outro, do eu.

Autorretrato, de Renata Bueno, prosa poética em diário, registra momentos, sentimentos e questionamentos do eu, do você, do ele, de nós todos. Há, ao virar das páginas, tentativas de se responder à pergunta que consideramos a mais difícil, já que há sempre mais de uma resposta para ela: afinal, quem sou eu?


Autorretrato, de Renata Bueno, foi publicado pelo selo Larousse jovem, em 2009.