Por Carlos Assis
Assim que li o texto Minha Geração, postado pelo Ernesto, lembrei-me do livro Leite Derramado, do Chico Buarque. Mesmo com todos os prêmios, o apelo dos jornais e dos amigos que não arriscaram criticar o lançamento do inviolável da MPB, não havia lido o livro. Mesmo assim, o muito que ouvi falar dele foi suficiente para fazer com que a identificação com o post do meu amigo colunista fosse imediata. Consegui o livro e comecei a lê-lo.
O velho Eulálio, protagonista do livro, é um moribundo centenário preso a um leito de hospital, que entrelaça com esforço os fiapos de memória aos acontecimentos do presente, reconstruindo através de diálogos, solilóquios e devaneios o homem que foi um dia – membro de uma família tradicional, descendente de portugueses, de um barão do Império, de um senador da Primeira República e herdeiro de toda a decadência produzida por essa aristocracia sem virtude que manteve durante séculos seus sobrenomes firmados em alicerces movediços e fragilizados pelo tempo (o tempo, Ernesto, só ele!).
Eulálio inicia sua narrativa delirante dirigindo-se a uma enfermeira(?):
“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família.”
O saudosismo que alimenta o histórico dessas abastadas famílias cria em torno delas uma aura de heroísmo quase mítico, dando a entender que ingressar nesse universo privado e acessar suas riquezas materiais e imateriais (como o peso do sobrenome) é mais valioso que qualquer coisa; portanto, retribuir tais honrarias como quem contrai uma dívida que não existe, é o mais certo do ponto de vista do patriarcado.
E Eulálio continua: “Minha mulher (...) já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe.” A mulher nunca será como a mãe porque é um membro agregado à família, e está sobre o crivo da mesma constantemente. Ele demonstra o mesmo ao falar do genro: “Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro.” O culpado pelo fracasso financeiro da família é também um agregado, o genro. Mas, por outro lado, orgulha-se do ancestral figurão do império, um abolicionista, porque queria mandar todos os “pretos brasileiros” de volta para a África.
Assim, cavando a memória, ele se lembra daqueles que o serviram: “(...) volta e meia lhe pedia um favor à-toa, mais para agradar a ele mesmo, que era de índole prestativa.” A lógica arcaica do bom escravo, hoje usada para definir o bom empregado, que serve porque gosta, não porque é mandado ou por questão profissional de interesse mútuo (prestação de serviço em troca de um salário). O curioso é o protagonista confessar que, na solidão, recorre à companhia do servo. Falta-lhe a amizade verdadeira, aquela que só germina onde não há relação de poder. É a solidão que prevalece quando todos os relacionamentos estão fadados aos seus caprichos, mandos e desmandos.
E nesse tom carregado de soberba e arrogância continua o velho Eulálio, fazendo planos para um futuro que não pertence a ele – ele está morrendo –, e, nesse futuro imaginário, ele pensa apenas em reavivar o nome de uma família que já está esfacelada. Lembra-se das propriedades da família que hoje estão soterradas pelos prédios da cidade que, na velocidade que lhe é característica, arrasou todo o cenário onde essa personagem foi rei um dia – por isso ele odeia o novo, a mobilidade, o dinamismo (a cidade cria o anonimato; ninguém conhece Eulálio d’Assumpção).
Eulálio é o Brasil arcaico, aristocrático e coronelista que o tempo, “com sua calma avassaladora”, varre do presente. Ele é o “tudo” e o “todos (...) de que o mundo está farto”.
Adeus, Eulálio!
Assim que li o texto Minha Geração, postado pelo Ernesto, lembrei-me do livro Leite Derramado, do Chico Buarque. Mesmo com todos os prêmios, o apelo dos jornais e dos amigos que não arriscaram criticar o lançamento do inviolável da MPB, não havia lido o livro. Mesmo assim, o muito que ouvi falar dele foi suficiente para fazer com que a identificação com o post do meu amigo colunista fosse imediata. Consegui o livro e comecei a lê-lo.
O velho Eulálio, protagonista do livro, é um moribundo centenário preso a um leito de hospital, que entrelaça com esforço os fiapos de memória aos acontecimentos do presente, reconstruindo através de diálogos, solilóquios e devaneios o homem que foi um dia – membro de uma família tradicional, descendente de portugueses, de um barão do Império, de um senador da Primeira República e herdeiro de toda a decadência produzida por essa aristocracia sem virtude que manteve durante séculos seus sobrenomes firmados em alicerces movediços e fragilizados pelo tempo (o tempo, Ernesto, só ele!).
Eulálio inicia sua narrativa delirante dirigindo-se a uma enfermeira(?):
“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família.”
O saudosismo que alimenta o histórico dessas abastadas famílias cria em torno delas uma aura de heroísmo quase mítico, dando a entender que ingressar nesse universo privado e acessar suas riquezas materiais e imateriais (como o peso do sobrenome) é mais valioso que qualquer coisa; portanto, retribuir tais honrarias como quem contrai uma dívida que não existe, é o mais certo do ponto de vista do patriarcado.
E Eulálio continua: “Minha mulher (...) já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe.” A mulher nunca será como a mãe porque é um membro agregado à família, e está sobre o crivo da mesma constantemente. Ele demonstra o mesmo ao falar do genro: “Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro.” O culpado pelo fracasso financeiro da família é também um agregado, o genro. Mas, por outro lado, orgulha-se do ancestral figurão do império, um abolicionista, porque queria mandar todos os “pretos brasileiros” de volta para a África.
Assim, cavando a memória, ele se lembra daqueles que o serviram: “(...) volta e meia lhe pedia um favor à-toa, mais para agradar a ele mesmo, que era de índole prestativa.” A lógica arcaica do bom escravo, hoje usada para definir o bom empregado, que serve porque gosta, não porque é mandado ou por questão profissional de interesse mútuo (prestação de serviço em troca de um salário). O curioso é o protagonista confessar que, na solidão, recorre à companhia do servo. Falta-lhe a amizade verdadeira, aquela que só germina onde não há relação de poder. É a solidão que prevalece quando todos os relacionamentos estão fadados aos seus caprichos, mandos e desmandos.
E nesse tom carregado de soberba e arrogância continua o velho Eulálio, fazendo planos para um futuro que não pertence a ele – ele está morrendo –, e, nesse futuro imaginário, ele pensa apenas em reavivar o nome de uma família que já está esfacelada. Lembra-se das propriedades da família que hoje estão soterradas pelos prédios da cidade que, na velocidade que lhe é característica, arrasou todo o cenário onde essa personagem foi rei um dia – por isso ele odeia o novo, a mobilidade, o dinamismo (a cidade cria o anonimato; ninguém conhece Eulálio d’Assumpção).
Eulálio é o Brasil arcaico, aristocrático e coronelista que o tempo, “com sua calma avassaladora”, varre do presente. Ele é o “tudo” e o “todos (...) de que o mundo está farto”.
Adeus, Eulálio!